sábado, 28 de fevereiro de 2009

A CANÇÃO DESESPERADA

Emerge a tua lembrança desta noite em que estou.
O rio junta ao mar o se lamento obstinado.

Abandonado como como os cais na madrugada.
É a hora de partir, ó abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Ó porão de escombros, feroz caverna de náufragos!

Era a negra , negra solidão das ilhas,
e ali, mulher de amor , teus braços me acolheram.

Era a sede e a fome , e tu foste uma fruta.
Era o luto e as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como pudeste conter-me
na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!

O desejo de ti foi o mais terrível e curto.
O mais revolto e ébrio, o mais tenso e ávido.

Cemitério de beijos, ainda tens fogo nas tumbas,
ainda as uvas ardem debicadas por passáros.

Oh a boca mordida, oh os beijados menbros,
oh os famintos dentes,oh os corpos trançados.

Oh a cópula louca de esperança e de esforço
em que nós nos juntámos e nos desesperámos.

E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra que quase nem nascia nos lábios.

Foi esse o meu destino e nele viajou a vontade,
e nele caiu a vontade, tudo em ti foi naufrágio!

De tombo em tombo tu ardeste e cantaste.
Marinheiro de pé na proa dum navio.

Ainda floresceste em cantos, ainda rompeste em correntes.
Ó porão de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido mergulhador cego, desventurado fundeiro,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!


É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite prende a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar abraça a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como o cais na madrugada.
Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos.

Ah para além de tudo. Ah para além de tudo.

Ê a hora de partir. Ó abandonado.



Pablo Neruda, in Vinte Poemas de Amor
e uma Canção Desesperada

5 comentários:

  1. Alex

    Pablo Neruda é uma referência e os seus poemas são uma espécie de biblia para mim. Mas não gosto deles traduzidos. E ainda menos mal traduzidos como é o caso.
    É quase um sacrilégio traduzir poesia. Cada palavra só pode ser aquela.
    Só quando o poeta é bilingue, como o era Pessoa (português-inglês) ou então uma tradução para inglês do Maiakovski que superou o original. Mas é raro.
    Vinte poemas de Amor e Uma Canção desesperada são lindissímos mas em español.
    Em qualquer dos casos dar a conhecer Neruda é quase um dever de cidadania. Ele é único e inesquecível.

    Abraço

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  2. Triste e belo: plena definição da obra de Neruda!

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  3. E reitero as palavras da Lídia, uma a uma, todas, sem excepção.

    Porque à semelhança de Neruda, ela também é única e inesquecível.

    Um beijo para as duas_______________________.

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  4. Tenho sempre dificuldade em comentar nestas caixas de comentários.
    Mas é sempre bom ler Neruda, e queria dizer-te isso mesmo, aqui.

    Obrigada.

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  5. há efectivamente textos surpreendentes...

    Abraço-te
    JustMe

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